Missões Jesuíticas – Guerreiros da Fé
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A religião sempre foi um tema muito importante pessoalmente e profissionalmente para Martin Scorsese. O cultuado diretor já deu inúmeras entrevistas revelando que pensou seriamente em ser padre na sua juventude. Suas obras, mesmo as mais violentas, geralmente contam com personagens com certa dose de religiosidade e tradição. É claro, ele também foi responsável por produções diretamente religiosas, como A Última Tentação de Cristo e Kundun.
Agora, repete a dose com Silêncio, uma obra sobre fé, perseverança e perseguição. A trama acompanha dois padre jesuítas portugueses, Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver), que viajam até o Japão para investigar o paradeiro de outro padre, Ferreira (Liam Neeson), numa época em que o catolicismo foi banido do país e em que os fiéis são perseguidos brutalmente.
Com a ajuda do sempre talentoso diretor de fotografia Rodrigo Prieto (O Segredo de Brokeback Mountain e O Lobo de Wall Street), Scorsese criou um de seus mais belos filmes. A cinematografia mescla tomadas suntuosas e cenários incríveis com momentos mais íntimos, geralmente representados em planos-detalhes, focados em elementos específicos, como as mãos dos padres e inúmeras imagens religiosas.
Trata-se de um trabalho impactante, com visual deslumbrante e excelentes atuações, especialmente de Andrew Garfield, que poderia ter sido lembrado por premiações pela performance. Na verdade, isso só não aconteceu pois o ator já estava sendo indicado por outro filme no mesmo ano, no caso Até o Último Homem.
O longa remete diretamente a A Missão, de Roland Joffé, com Robert De Niro, que também trazia a missão jesuíta como tema. A produção de 1986 ficou marcada pela fabulosa trilha sonora de Ennio Morricone. De forma inteligente, tentando mostrar que a voz de seus padres é mais importante do que uma trilha que torne as cenas mais impactantes, Scorsese opta pela quase completa ausência de música. Temos apenas algumas músicas ambientes, que geralmente estão ligadas ao exercício religioso.
Silêncio é mais do que um título ou um voto. É um estado de espírito necessário para se absorver tudo que o filme e seus personagens têm a dizer. São inúmeros os debates religiosos. É interessante ver Garupe reclamando como os camponeses no Japão presam mais por sinais de fé do que pela fé em si, algo que é sintomático em todo debate religioso, até os dias de hoje.
Diferentemente do que faz em A Última Tentação de Cristo, Scorsese deixa o lado mais crítico de lado, mas oferece algumas metáforas religiosas bem interessantes. Temos a presença de figuras claramente inspiradas em Judas e Pedro, especialmente no que diz respeito a sua negação de Cristo. Também é inevitável não comparar Rodrigues com Jesus, seja pelo visual, seja pelo martírio.
Quando se propõe ao debate, Silence (no original) oferece cenas fabulosas e questionadoras, mas sofre um pouco do problema de apresentar o outro lado, no caso os japoneses, como verdadeiros selvagens. Há boas cenas de diálogos entre japoneses e portugueses, mas também há um certo vitimismo na forma como a religião católica é abordada, algo que historicamente é bem problemático.
A obra sofre ainda em seu terço final. Como forma de condensar parte da história, o longa conta com uma narração de uma pessoa que só aparece no fim da história. Passa a clara impressão de que o filme não estava conseguindo dizer o que queria através das sequências e que acabou precisando de uma voz em off para passar passo a passo o que estava acontecendo.
Não tira os méritos do filme, mas não deixa de representar uma falha.
Comentário:
Inácio de Loyola, o filme, suscita muitas interrogações e se presta a leituras diversas. Deixo de lado a questão sobre a fidelidade histórica do filme, sua correção teológica em vista do que Sto. Inácio escreveu e me atenho apenas a três observações. apenas.
Começo pela jornada de Inácio que, à semelhança do tema imemorial da jornada humana, envolve três etapas. A segurança inicial, a do militar corajoso, dá lugar à crise, representada, de início, pelo ferimento na batalha e, um pouco mais tarde, pela angústia que antecede a conversão. A decisão de se entregar mais radicalmente à missão conclui o percurso. Jornadas e sua inevitabilidade enquanto experiência humana, e humanizadora, lembram que o primeiro equilíbrio estará sempre aquém de nós mesmo, o que será, esse é o seu melhor destino, sucedido por alguma espécie de crise, por algum abandono, por alguma partida. É essa hora, na qual o passado já não existe e o futuro ainda não se anunciou, que é lembrada como uma noite escura, feita de despedaçamentos. E mais adiante, quando alguma serenidade aparecer, já não nos reconheceremos na sombra que iniciou a jornada. É o que São Paulo anuncia quando inverte o que habitualmente associamos à força e à fraqueza?
O entrevero entre Inácio e os inquisidores põe em cena uma controvérsia que acompanha a história do cristianismo, a oscilação entre dois pólos igualmente necessários, ou seja, de um lado, a força do já instituído e, de outro, a pressão para a renovação que vem dos gestos instituidores. Que essa tensão não tenha se afrouxado diz muito sobre a duração e a contundência do cristianismo. Se essa tensão nos parece evidente, as razões que talvez a expliquem não o são. Encontram-se, quem sabe, encontram na condição humana, o lugar onde ocorre a experiência religiosa. Pertencemos a dois mundos, simultaneamente habitados por nós. Existimos entre o finito e o infinito, cidadãos de dois territórios, sem qualquer prerrogativa real de optar por um deles apenas. Nenhuma realização na finitude, qualquer que seja a sua natureza, nos esgotará e, de igual modo, nenhuma suposta evasão que imagine suprimir nossa finitude será possível. Nenhuma perfeição e nenhum acabamento estão ao nosso alcance. Não o que diz o Evangelho sobre a permanente labuta do humano que não tem onde repousar sua cabeça?
Observo, por fim, a insistente recomendação de Inácio para que observemos os novos problemas postos pelo cenário social, que já não é o medieval, e para o qual ainda não contamos com maiores recursos de compreensão. O homem a ser educado na tradição cristã ganha nesse momento, a aurora da modernidade, uma espessura inédita. Já não basta a doutrina clássica, os meandros da alma humana revelam-se ainda mais complexos e será necessário todo um novo arsenal, todo um conjunto de exercidos, para tornar visível o que, até aqui, mantinha-se invisível. Aqui a lição de Inácio é clara: há novas fronteiras abertas pela história, é a elas que o cristianismo deve estar atento, é delas que decorrem os desafios a serem enfrentados. E talvez essa seja uma das interrogações dirigidas aos cristãos pelo filme: quais são as fronteiras onde os cristãos desse tempo que é o nosso, devem estar presentes?
Ricardo Fenati
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